Por Aurélio Munhoz, Sócio Capital* - Revista Carta Capital
Na adolescência, ostentava a camisa do clube do coração com orgulho, mesmo depois das derrotas do meu onze favorito. Colecionava álbuns de figurinhas da equipe. Tinha time de futebol de botão, pôster colado na parede do quarto, chaveiro e, claro, bandeira do clube. Acompanhava todos, rigorosamente todos, os jogos da equipe.
Mas, assim como as espinhas que eu tinha no rosto naquela época, a paixão acabou. E me divorciei da minha antiga equipe do coração. Anos depois, já nos anos 90, o mesmo aconteceu com o próprio futebol.
Descontentamento com a mediocridade e o mercenarismo de muitas cepas de jogadores. Frustração com a conversão do futebol em negócio, muito mais que em esporte e arte. Irritação com o banditismo das quadrilhas de cartolas que vampirizam o futebol. Violência e estupidez de muitas torcidas organizadas. Tudo isso, junto, explica meu afastamento das arquibancadas, onde estive pela última vez em um jogo no qual quase levei uma pedrada na cabeça, durante uma briga de torcidas. E eu nem estava no Morro do Alemão, em meio a uma ocupação do Exército e da PM carioca.
Agora, guardo uma saudável distância em relação ao esporte – nem tão longe a ponto de não saber comentar o desempenho dos principais times do País nos campeonatos estaduais, nas rodas de amigos, e nem tão perto a ponto de cometer aquelas tolices que os torcedores muitas vezes fazem.
Não importam as razões que tive para abandonar minha paixão pelo futebol. Afinal, não é este o propósito deste artigo, assim como não é nosso objetivo buscar aprofundamento sobre o tema, fonte permanente de pesquisa dos estudos antropológicos no Brasil. Deixemos esta tarefa aos intelectuais.
O que desejo aqui é, apenas, convidá-lo a pensar brevemente sobre a relação que temos com o esporte. Uma relação, muitíssimas vezes, exagerada, irracional, doentia, conflitante, contraditória, preconceituosa e até violenta. Uma coleção de adjetivos que confirmam a tese de Roberto da Matta, o Pelé da Antropologia Cultura brasileira, para quem o futebol “traz à tona as várias tensões sociais de um povo”.
A verdade é que se leva o futebol a sério demais no Brasil e, em seu santo nome, cometem-se as maiores barbaridades. Há muitos anos, pertenço ao insólito time dos 43% de brasileiros que não gostam de futebol, segundo pesquisa feita em 2008 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Como se vê, a paixão pelo esporte está longe de ser unanimidade nacional. Mas um segmento expressivo da imprensa e da sociedade insiste em ignorar isso. Faz de conta que não existimos.
Pior é que ironiza e rejeita as pessoas que não gostam de futebol. Trata-nos quase com o mesmo nojo que sentimos quando pensamos nos seres horrendos e babões de “Alien, o Oitavo Passageiro”, do cineasta Ridley Scott. Cega pelo minimalismo do senso comum, esta turma se esquece do óbvio: que não somos obrigados a gostar de futebol.
Mas este time vai além. Mesmo admitindo-se que 57% dos brasileiros conhecem a escalação do seu time titular favorito muito melhor que o grupo de amigos dos seus filhos, este grupo dedica um espaço exageradamente grande ao futebol e suas estrelas. Trata a trupe do mundo do futebol com o mesmo excesso de mimos com o qual estes meninos novos ricos da bola referem-se aos seus carros importados.
Resolvi mensurar o tamanho deste mimo. Em um dia normal, o maior portal de notícias do Brasil dedicou ao futebol 16 das 18 notícias em destaque na tela inicial da sua home page. As exceções foram o Gram Slam de Judô, em São Paulo, e o acidente com o piloto polonês de Fórmula 1 Robert Kubica.
Dia desses, ouvi, em uma reunião de família, que tinha de convencer meu filho a escolher um time de futebol do coração para garantir que ele seja incluído socialmente. Perdoe-me se estiver errado, mas o que inclui uma pessoa socialmente é sua capacidade de interagir bem com seres humanos – algo que se dá por sua inteligência, cultura, bom humor, bondade. Coisas, enfim, que não tem a ver necessariamente com futebol.
Não por acaso, este artigo foi escrito no mesmo dia em que o atacante Ronaldo deixou de ser o “Fenômeno” (apelido merecidíssimo, aliás) para ser apenas o cidadão Ronaldo Luís Nazário de Lima. Mais do que uma lenda, Ronaldo é um ícone do relacionamento pueril que temos com o futebol e com a nossa própria gente.
Os mesmos torcedores que agora o hostilizam pela derrocada do Corinthians na Copa Libertadores da América foram os que o idolatraram, há quase dois anos, quando ele fez sua estréia no alvinegro paulista. Ou, se prefeir: os mesmos torcedores que até ontem o adjetivaram de “gordo” choram o anúncio da sua aposentadoria dos gramados.
Para concluir: segundo pesquisa feita em 2010 pelo Ibope, os dois times mais odiados do Brasil são o já citado Corinthians (21%) e o Flamengo (16%). E os dois times mais amados? Os mesmos, claro. Há algo de muito errado no futebol. Mas, diferente do que pensamos, o problema vai muito além das quatro linhas do campo.
*Aurélio Munhoz é jornalista e sociólogo. Página no Twitter: @aureliomunhoz
Na adolescência, ostentava a camisa do clube do coração com orgulho, mesmo depois das derrotas do meu onze favorito. Colecionava álbuns de figurinhas da equipe. Tinha time de futebol de botão, pôster colado na parede do quarto, chaveiro e, claro, bandeira do clube. Acompanhava todos, rigorosamente todos, os jogos da equipe.
Mas, assim como as espinhas que eu tinha no rosto naquela época, a paixão acabou. E me divorciei da minha antiga equipe do coração. Anos depois, já nos anos 90, o mesmo aconteceu com o próprio futebol.
Descontentamento com a mediocridade e o mercenarismo de muitas cepas de jogadores. Frustração com a conversão do futebol em negócio, muito mais que em esporte e arte. Irritação com o banditismo das quadrilhas de cartolas que vampirizam o futebol. Violência e estupidez de muitas torcidas organizadas. Tudo isso, junto, explica meu afastamento das arquibancadas, onde estive pela última vez em um jogo no qual quase levei uma pedrada na cabeça, durante uma briga de torcidas. E eu nem estava no Morro do Alemão, em meio a uma ocupação do Exército e da PM carioca.
Agora, guardo uma saudável distância em relação ao esporte – nem tão longe a ponto de não saber comentar o desempenho dos principais times do País nos campeonatos estaduais, nas rodas de amigos, e nem tão perto a ponto de cometer aquelas tolices que os torcedores muitas vezes fazem.
Não importam as razões que tive para abandonar minha paixão pelo futebol. Afinal, não é este o propósito deste artigo, assim como não é nosso objetivo buscar aprofundamento sobre o tema, fonte permanente de pesquisa dos estudos antropológicos no Brasil. Deixemos esta tarefa aos intelectuais.
O que desejo aqui é, apenas, convidá-lo a pensar brevemente sobre a relação que temos com o esporte. Uma relação, muitíssimas vezes, exagerada, irracional, doentia, conflitante, contraditória, preconceituosa e até violenta. Uma coleção de adjetivos que confirmam a tese de Roberto da Matta, o Pelé da Antropologia Cultura brasileira, para quem o futebol “traz à tona as várias tensões sociais de um povo”.
A verdade é que se leva o futebol a sério demais no Brasil e, em seu santo nome, cometem-se as maiores barbaridades. Há muitos anos, pertenço ao insólito time dos 43% de brasileiros que não gostam de futebol, segundo pesquisa feita em 2008 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Como se vê, a paixão pelo esporte está longe de ser unanimidade nacional. Mas um segmento expressivo da imprensa e da sociedade insiste em ignorar isso. Faz de conta que não existimos.
Pior é que ironiza e rejeita as pessoas que não gostam de futebol. Trata-nos quase com o mesmo nojo que sentimos quando pensamos nos seres horrendos e babões de “Alien, o Oitavo Passageiro”, do cineasta Ridley Scott. Cega pelo minimalismo do senso comum, esta turma se esquece do óbvio: que não somos obrigados a gostar de futebol.
Mas este time vai além. Mesmo admitindo-se que 57% dos brasileiros conhecem a escalação do seu time titular favorito muito melhor que o grupo de amigos dos seus filhos, este grupo dedica um espaço exageradamente grande ao futebol e suas estrelas. Trata a trupe do mundo do futebol com o mesmo excesso de mimos com o qual estes meninos novos ricos da bola referem-se aos seus carros importados.
Resolvi mensurar o tamanho deste mimo. Em um dia normal, o maior portal de notícias do Brasil dedicou ao futebol 16 das 18 notícias em destaque na tela inicial da sua home page. As exceções foram o Gram Slam de Judô, em São Paulo, e o acidente com o piloto polonês de Fórmula 1 Robert Kubica.
Dia desses, ouvi, em uma reunião de família, que tinha de convencer meu filho a escolher um time de futebol do coração para garantir que ele seja incluído socialmente. Perdoe-me se estiver errado, mas o que inclui uma pessoa socialmente é sua capacidade de interagir bem com seres humanos – algo que se dá por sua inteligência, cultura, bom humor, bondade. Coisas, enfim, que não tem a ver necessariamente com futebol.
Não por acaso, este artigo foi escrito no mesmo dia em que o atacante Ronaldo deixou de ser o “Fenômeno” (apelido merecidíssimo, aliás) para ser apenas o cidadão Ronaldo Luís Nazário de Lima. Mais do que uma lenda, Ronaldo é um ícone do relacionamento pueril que temos com o futebol e com a nossa própria gente.
Os mesmos torcedores que agora o hostilizam pela derrocada do Corinthians na Copa Libertadores da América foram os que o idolatraram, há quase dois anos, quando ele fez sua estréia no alvinegro paulista. Ou, se prefeir: os mesmos torcedores que até ontem o adjetivaram de “gordo” choram o anúncio da sua aposentadoria dos gramados.
Para concluir: segundo pesquisa feita em 2010 pelo Ibope, os dois times mais odiados do Brasil são o já citado Corinthians (21%) e o Flamengo (16%). E os dois times mais amados? Os mesmos, claro. Há algo de muito errado no futebol. Mas, diferente do que pensamos, o problema vai muito além das quatro linhas do campo.
*Aurélio Munhoz é jornalista e sociólogo. Página no Twitter: @aureliomunhoz
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